Mark Scout não consegue suportar o fato de que sua mulher morreu.
Quando está sozinho com seus pensamentos, ele caminha até a geladeira, abre uma cerveja e cochila com a televisão ligada. Quando vai para o trabalho, Mark deixa o celular em um armário, obedece aos comandos de um segurança e entra no elevador que lhe ativa um chip no cérebro e elimina seu acesso às memórias criadas fora do ambiente de trabalho.
Essa é a premissa da série Ruptura, da Apple TV. Uma mistura de The Office com Lost, que tem um elenco peculiar, riqueza no desenvolvimento dos personagens, e detalhes misteriosos que alimentam várias teorias no Reddit [rede social que funciona como um fórum para os mais diversos assuntos].
(Alerta de spoilers nos próximos parágrafos)
Poucos de nós confiariam em uma empresa a ponto de permitir que ela colocasse um chip em nosso crânio e dividisse nosso ser em dois: o “eu do trabalho” e o “eu da vida”. No entanto, muitos de nós já passaram por dores tão profundas que é tentador tomar decisões drásticas em busca de alívio. “Você já pensou que, talvez, a melhor maneira de lidar com uma situação f—ida em sua vida seria desligar seu cérebro durante umas horas do dia?”, um personagem secundário pergunta a Mark, na primeira temporada. Ele leva quase toda a primeira temporada para de fato avaliar esse questionamento.
Podemos entender o motivo pelo qual Mark decide entrar no programa de ruptura. A série, no entanto, imediatamente despe sua audiência de qualquer traço de ingenuidade. A tecnologia no crânio de Mark não é apenas um alívio inócuo para a depressão. Na metade da primeira temporada, somos informados de que o tratamento também foi estendido para pessoas que estão enfrentando dores físicas insuportáveis como, por exemplo, uma mulher que quer evitar as dores do trabalho de parto. Na temporada 2, Lumon, a empresa que está por trás da tecnologia, começa a testar o chip para eliminar desconfortos (como uma ida ao dentista) e incômodos (escrever mensagens de agradecimentos). Em um episódio recente, somos levados para a cidade natal do criador da tecnologia, uma cidadezinha desolada, onde a Lumon costumava fabricar éter, um fármaco anestésico e dissociativo.
Há anos, os fãs da série Ruptura têm especulado sobre a real natureza dos negócios da Lumon. (Entre algumas das teses mais populares estão: clonagem e transferência de consciência). Contudo, episódios recentes sugerem que a empresa tem um objetivo muito mais próximo de nós, com o qual podemos nos identificar: um mundo sem sofrimento, sem angústia.
“Nós não queremos experimentar nada que seja desagradável”, disse a atriz Dichen Lachman em uma entrevista recente. Ela interpreta a esposa de Mark e a cobaia da Lumon. “Se fosse possível, nós também gostaríamos de ter a prescrição de um medicamento que impedisse o sofrimento”.
A vida cristã, no entanto, não só reconhece a inevitabilidade do sofrimento como também oferece consolo. “Por isso, não tema, pois estou com você; não tenha medo, pois sou o seu Deus”, diz o Senhor através do profeta Isaías (Isaías 41.10). “Eu o fortalecerei e o ajudarei; eu o segurarei com a destra da minha justiça.” É claro que a presença de Deus não é sinônimo de uma vida sem dor — nem a dor deve sempre ser evitada. “Não só isso, mas também nos gloriamos nas tribulações, porque sabemos que a tribulação produz perseverança; a perseverança, um caráter aprovado; o caráter aprovado, esperança.” (Romanos 5.3-4)
As palavras de Paulo enfatizam o quanto podem ser longos esses períodos dolorosos. Por isso, não é surpresa ver cristãos também serem atraídos por ”soluções” escapistas. Nesses momentos, eu me lembro da citação de Henri Nouwen, em seu livro de 1975, Reaching Out: The Three Movements of the Spiritual Life [publicado no Brasil sob o título Crescer: Os Três Movimentos da Vida Espiritual]:
Nossa cultura tem ficado mais sofisticada nessa arte de evitar a dor, não apenas a dor física, mas também a emocional e a mental. Não apenas enterramos nossos mortos como se ainda estivessem vivos, mas também enterramos nossas dores como se elas não existissem realmente. Ficamos tão acostumados com esse estado de anestesia que entramos em pânico, quando não há mais nada ou ninguém para nos distrair. Quando não temos nenhum projeto para terminar, nenhum amigo para visitar, nenhum livro para ler, nenhuma televisão para assistir ou nenhum disco para tocar, e quando somos deixados sozinhos, somente em companhia de nós mesmos, somos trazidos para tão perto da revelação basilar de nossa solidão humana e temos tanto medo de experimentar uma sensação de solidão generalizada que faremos qualquer coisa para nos ocupar de novo e continuar esse jogo que nos faz acreditar que está tudo bem, afinal.
Nouwen lista mecanismos de enfrentamento comuns, como passar tempo com amigos, ler e assistir à televisão. Alguns de nós também acabam recorrendo a sexo, álcool e drogas como forma de escapismo. Como cristãos, talvez sejamos propensos a julgar cada distração por seus méritos, colocando em algumas o rótulo de “saudáveis”, como, por exemplo, conectar-se com pessoas; e em outras o rótulo de “não saudáveis”, como, por exemplo, ter relações sexuais fora do casamento e fumar maconha. No entanto, esse escapismo nocivo pode acontecer sempre que buscamos soluções para o sofrimento que vão além do que as Escrituras nos mostram como o verdadeiro caminho para a paz.
A jornada [para escapar do escapismo] sempre começa quando nos aproximamos de Deus, como nos lembra o salmista: “Confie nele em todos os momentos, ó povo; derrame diante dele o coração, pois Deus é o nosso refúgio” (Salmos 62.8). Uma e outra vez, as Escrituras insistem que nós devemos nos voltar para Deus quando estamos ansiosos, exaustos e debilitados (Filipenses 4.6-7; 1Pedro 5.7; Mateus 11.28).
É esse o tipo de dependência que nos permite enxergar aspectos mais profundos do caráter de Deus, como Paulo nos lembra no célebre versículo de 2Coríntios 12.9: “Ele, porém, me disse: ‘A minha graça é suficiente para você, pois o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza’”. Para os cristãos, amadurecer na fé e processar nosso sofrimento frequentemente se parecem com os dois lados da mesma moeda. “Quero conhecer Cristo, o poder da sua ressurreição e a participação nos seus sofrimentos, tornando‑me como ele na sua morte”, escreve Paulo em Filipenses 3.10.
Quando escapamos do sofrimento, em vez de participarmos dele, buscamos uma espécie de falso alívio — um alívio que não influencia positivamente a formação do nosso caráter nem nos ajuda a trabalhar questões ligadas a nossas necessidades subjacentes.
À medida que caminhamos para o fim da segunda temporada de Ruptura, fica claro que a “solução” criada pela Lumon para o “eu da vida” não funciona. Debates sobre a personalidade do “eu do trabalho” percorrem toda a série; ainda que a combinação de interesses pessoais do “eu da vida” com objetivos corporativos tenha trazido o “eu do trabalho” ao mundo, ele emergiu com opiniões, sentimentos e desejos que lhe são próprios. Às vezes, a sua inação desencadeia um sentimento de desespero e até mesmo incita uma das personagens a tentar tirar a própria vida. No episódio 9, um “eu do trabalho” — que se encontra brevemente com seu filho [do seu “eu da vida”] e passa várias horas com a esposa, como recompensa por seu bom trabalho — desencadeia uma crise emocional, depois que a esposa termina o relacionamento. Sua crise é tão grande que ele decide se demitir.
Se filósofos e teólogos afirmam que o sofrimento é imprescindível para a experiência humana, a série Ruptura enfatiza e inverte essa verdade: a experiência humana é imprescindível para o sofrimento. Na Lumon, toda tentativa de se livrar da dor gera um ser humano que tem sua existência definida por essa dor.
É como todos os bilhões de quilos de plástico que nós criamos e jogamos fora, e que acabam chegando em “todos os lugares, da Fossa das Marianas [no Oceano Pacífico, que é o local mais profundo do planeta] ao topo do Monte Everest, do leite materno à corrente sanguínea”, disse a arqueóloga Sarah Newman em seu livro sobre a história dos resíduos.
“O maior mito sobre lixo está no simples fato de falarmos como se estivéssemos jogando as coisas ‘fora’”, ela explica. “Não há nem nunca houve um ‘fora’ para onde as coisas vão”.
E nós sabemos disso, mas ainda assim continuamos a produzir e a consumir plástico, mesmo que ele seja um veneno para o nosso mundo e para nós mesmos. Nós entendemos esse princípio, quando o assunto é adversidade e dor; mas ainda assim, mesmo sobrecarregados e devastados, nós buscamos distrações — e muitos de nós passariam por uma ruptura, se pudessem.
Henri Nouwen oferece uma visão diferente, que vai além de nos dizer que devemos evitar o escapismo, nos esforçar e nos curar.
“Ninguém passa por essa vida sem sofrer. Todos nós carregamos feridas, sejam elas físicas, emocionais, mentais ou espirituais”, ele escreve na citação atribuída ao The Wounded Healer [O curador ferido]. “A grande questão não é ‘como podemos esconder as nossas feridas?’ para não precisarmos sentir vergonha delas, mas sim ‘como podemos colocar nossas dores e feridas a serviço dos outros?’”.
No mundo sombrio de Ruptura, essa vulnerabilidade permanece obscura. No episódio 8, uma antiga chefe de Mark volta à cidade natal e pede um favor a um velho conhecido. Na primeira conversa depois de anos, eles dão indícios de um relacionamento traumático, por coisas que aconteceram enquanto trabalhavam na Lumon, quando eram jovens. Mas a maior parte dessas reminiscências se manifesta sob a forma de raiva, antes que a chefe de Mark coloque um limite. “Eu não vou servir de saco de pancada para seus ressentimentos”, ela diz a seu colega.
Ele acaba se convencendo a ajudá-la. Mas não revela detalhes sobre como a companhia o feriu emocionalmente. Nem ela revela seus sentimentos profundos de dor pela morte da mãe. Em vez disso, ele inala éter. E, depois, passa o éter para ela.
Morgan Lee é gerente editorial da CT Global na Christianity Today.
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