Existem dois erros opostos que podemos cometer, quando pensamos sobre pastoreio e trauma. O primeiro é achar que tudo sobre o tema é muito confuso e complexo e, em consequência disso, não fazermos nada a respeito. O segundo erro é ter excesso de confiança em nossa capacidade como agentes de cura e, com isso, causar dano, tentando resolver tudo. Existe um caminho melhor e mais humilde que podemos trilhar. Embora admitamos que não somos especialistas [quando o assunto é trauma], somos capazes de reconhecer que há muitas maneiras pelas quais podemos, e devemos, agir com cuidado amoroso e centrado em Cristo.
A experiência do trauma
Trauma é um termo técnico que adquiriu um amplo uso popular. Às vezes, ficamos desnorteados quando somos confrontados com termos técnicos; por isso, vale a pena começarmos reconhecendo que o trauma é sempre uma experiência de sofrimento, e que aqueles que sofrem devem sempre ser motivo de preocupação para nós e nossas igrejas. O trauma é, às vezes, descrito como uma experiência que deixa a pessoa devastada, arrasada, derrubando suas defesas e causando feridas. Seja nos casos de um combate militar, um acidente de carro com risco de vida, um abuso infantil continuado ou por alguma outra razão, experiências traumáticas deixam sua marca, pois o impacto do passado é trazido para a vida no presente.
O efeito do trauma varia. Muitas vezes, produz um nível elevado de agitação, especialmente em situações que pareçam ameaçadoras. Isso pode fazer com que algumas pessoas estejam em constante estado de alerta, com uma hipervigilância sempre atenta ao perigo (real ou sentido). Pode ser difícil para alguém que sofra de algum trauma se envolver com as pessoas ao seu redor. Isso gera um aumento da ansiedade, e a pessoa pode começar a se sentir distante de tudo que a cerca.
Pessoas que experimentaram traumas podem, portanto, ser mais sensíveis a certas situações, ruídos ou narrativas específicas. Muitas vezes, essas coisas são associadas a algum fato do passado. Por exemplo, o barulho de fogos de artifício pode evocar em um soldado algum trauma vivido no campo de batalha. Esse soldado não só se lembra da experiência, mas, de certa forma, ele a revive — e sente de novo, no presente, as emoções e sensações físicas associadas ao trauma original.
O trauma isola
Pessoas que sofrem traumas muitas vezes carregam um sentimento de vergonha. Cogitam se talvez não fizeram algo que lhes parece vergonhoso (mesmo que tenham sido elas próprias as vítimas). Ou fizeram ou deixaram de fazer algo que passou a lhes parecer vergonhoso. Ou talvez seja a própria sensação de incapacidade de enfrentar o trauma que, de alguma forma, lhes pareça digna de vergonha.
O fato é que a vergonha nos isola. Ela nos faz sentir que não somos aceitos, que somos indesejados, é como se não pertencêssemos àquele lugar. Ela nos faz recuar e evitar as pessoas. O trauma às vezes é identificado como algo que consideramos de tal forma horrível que se torna “impossível de descrever”. O trauma nos silencia — não temos palavras para descrever o que nos aconteceu — e isso reforça a sensação de isolamento.
A esperança do Evangelho
Em seu ministério na terra, Jesus foi em busca dos que sofrem. Os enfermos e os necessitados — e aqueles que se consideravam excluídos, marginalizados — vinham até ele (veja Marcos 1.32 e 10.49). Espera-se que a igreja imite o próprio Jesus e também vá em busca dos que sofrem — “se um membro sofre, todos os outrros sofrem com ele” (1Coríntios 12.26). Essa aceitação dos que sofrem e esse amor por eles estão enraizados na obra redentora de Jesus. Ele “suportou a cruz, ao desprezar a vergonha” (Hebreus 12.2); por isso, temos uma mensagem que fala poderosamente tanto ao sofrimento quanto à vergonha.
Cinco princípios para nossas igrejas
1. Esteja ciente da possibilidade. Quando alguém pergunta se uma igreja ou um ministério tem conhecimento e instrução a respeito do tema “trauma”, muitas vezes o que eles querem saber é: “Vocês vão me atender? Serei notado e bem-vindo? Ou me sentirei como se eu fosse um problema complicado demais ou muito estranho para se admitir?” Não precisamos ser especialistas no assunto, mas precisamos estar cientes de que, ao nosso lado, em nossas igrejas, há pessoas cujo sofrimento passado continua a gerar lutas no presente. Foi por isso que escrevi Understanding Trauma [Entendendo o Trauma]: com essa obra, eu queria fornecer uma introdução ao trauma que fosse especificamente projetada para a vida da igreja.
Essa consciência [sobre o trauma] moldará nossas suposições e respostas às pessoas. Nós, por exemplo, não mais partiremos do pressuposto de que um indivíduo que seja distante e não faça contato visual ou fale de maneira abrupta está simplesmente sendo rude. Consideraremos a possibilidade de que ele possa estar lutando contra a ansiedade, enquanto tenta bravamente entrar no prédio da nossa igreja, em vez de simplesmente virar e sair correndo dali.
2 Abra espaço em suas boas-vindas. A maioria de nós sente certa ansiedade quando entra em um ambiente desconhecido — particularmente quando se trata de um ambiente em que todas as outras pessoas parecem se sentir em casa — e essa ansiedade é intensificada no caso daqueles que passaram por algum trauma. Para evitar aglomerações, essas pessoas podem sair antes de o culto acabar ou chegar depois do início do culto, e podemos ser pacientes com isso. A forma como recebemos e nos despedimos dos irmãos pode ser calorosa e acolhedora, mas também deve, ao mesmo tempo, abrir espaço para que as pessoas escolham seu próprio nível de interação. Faça o que puder para reduzir o congestionamento na entrada e certifique-se de que haja uma rota de saída clara e desobstruída.
Se a experiência traumática de uma pessoa estiver associada à igreja, aspectos comuns do culto podem ser associados a ameaças e até mesmo pegá-los de surpresa. Uma música que muitas pessoas acham reconfortantemente familiar, por exemplo, pode fazer com que outras revivam memórias viscerais de sofrimento e desamparo. Isso pode fazer com que algumas pessoas precisem sair um pouco do culto, para se recuperar e, depois, voltarem. Proteja o direito delas se retirarem ou fazerem uma pausa, e assegure-se de que possam andar pela igreja livremente, sem constrangimento. Podemos oferecer ajuda de alguma forma, dizendo: “Se precisar de alguma coisa, é só pedir. Terei prazer em ajudar.”
3 Alertas e avisos. Um pregador não pode concebivelmente conhecer, e muito menos considerar, todas as várias sensibilidades de seus ouvintes. Mas a angústia severa que alguém experimenta ao reviver um trauma merece atenção especial. Certos tópicos ou narrativas podem ser um gatilho para alguém que sofreu um trauma: isto é, a lembrança — ou, mais precisamente, a experiência — de seu sofrimento pode ser evocada de uma forma bem vívida por essas coisas.
A Bíblia não evita as duras realidades do pecado e do sofrimento, o que significa que inclui alguns relatos categóricos de brutalidade física e violência sexual. Não devemos querer evitar essas passagens, mas devemos estar cientes do impacto que elas podem ter. Podemos, portanto, considerar dar um aviso prévio à congregação, quando formos ler ou pregar uma dessas passagens. Uma breve menção, logo no início do culto, pode ser tudo o que é necessário. Admitir que alguns possam querer sair do templo antes da leitura dessas passagem e da pregação facilitará muito isso. E também comunica claramente a mensagem: Nós lhe enxergamos e nos importamos com você.
4. Siga os conselhos das Escrituras. A Bíblia geralmente é discreta quando descreve a violência e o sofrimento. Enquanto os romances contemporâneos muitas vezes dão relatos extensos e gráficos de fatos e emoções, a Bíblia raramente faz isso. Faríamos bem em seguir esse exemplo e evitar descrições gráficas na pregação e no ensino.
Também seríamos sábios em evitar tentativas equivocadas de “aliviar o clima”. O que para nós soam como comentários espirituosos sobre traumas, feitos para aliviar o constrangimento e a tensão, muito provavelmente não cairão bem para as pessoas que já passaram por algum trauma. É provável que nossos comentários comuniquem que não temos noção da gravidade do que essas pessoas viveram, ou mesmo que estamos menosprezando e banalizando a experiência delas.
5. Envolvimento e pertencimento. À medida que aumentamos nossa consciência desse assunto e abrimos espaço para as diferentes necessidades das pessoas que nos cercam, devemos resistir à tendência de adotar uma mentalidade do tipo “nós versus eles”. Alguém que sofra de um trauma pode presumir que exista um grupo dos chamados “nós” (ao qual eles possivelmente não podem pertencer) que já tem tudo definido, e que ela deve fazer parte do problemático e carente grupo dos chamados “eles”. Sabemos que não é bem assim. O evangelho, é claro, contraria diretamente esse pensamento. Somos todos necessitados. E estamos todos do lado de fora, até que Cristo nos traga para dentro.
Mais do que qualquer outra comunidade, a igreja deve comunicar acolhimento e aceitação para aqueles que se sentem isolados, envergonhados ou transtornados. Uma experiência compartilhada de graça pode criar (e de fato cria) comunidades que são excepcionalmente boas em incorporar diferenças. Os crentes cristãos sabem que Deus usa o sofrimento em seus planos e propósitos. Ele fez isso em Cristo. Quando Paulo fala em participar abundantemente nos sofrimentos de Cristo, ele deixa claro que essas experiências foram usadas por Deus para torná-lo ainda mais eficaz em seu ministério (2Coríntios 1.3-7). Aqueles que passaram por um trauma têm muito a ensinar à igreja de Deus, e devemos estar ansiosos para usar todos os dons que Deus dá ao seu povo. Quando pensarmos naqueles entre nós que podem estar sofrendo por algum trauma, podemos vê-los tanto como um “caniço ferido” (Mateus 12.20) que precisa que lhe dispensemos o mesmo cuidado que Cristo nos dispensa, quanto podemos vê-los como irmãos e irmãs que têm muito a contribuir como membros do corpo de Cristo.
Steve Midgley é diretor-executivo do Aconselhamento Bíblico do Reino Unido e pastor na Christ Church Cambridge [Igreja de Cristo em Cambridge]. Em seu livro, Understanding Trauma [Entendendo o Trauma], Steve fornece orientação para as igrejas sobre como caminhar, com sabedoria e compaixão, ao lado daqueles que estão lutando com algum trauma.
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