Palavra Cristã

A epidemia de diagnósticos é um problema médico…e também um problema espiritual

“Eu sou médica há mais de trinta anos e neurologista há vinte e cinco”, Suzanne O’Sullivan escreve no início da obra The Age of Diagnosis: How Our Obsession with Medical Labels is Making Us Sicker [A era do diagnóstico: como nossa obsessão por rotulações médicas tem nos deixado mais doentes]. “Nos últimos tempos, tenho ficado particularmente preocupada com o grande número de pessoas jovens que são encaminhadas para mim e dizem ter três, quatro ou cinco diagnósticos pré-existentes de condições crônicas, das quais apenas algumas podem ser curadas”.

Eu mesma não sou médica nem tenho expertise na área. Mas imagino que existam algumas pessoas na mesma posição que eu — uma estadunidense da geração millennial e mãe de crianças pequenas em idade escolar— que ainda não perceberam aquilo que O’Sullivan enxerga mais de perto: um aumento nos diagnósticos.

Este é um assunto que precisa ser tratado com cuidado e O’Sullivan sabe disso. Fora do ambiente bombástico e sem limites do mundo dos talk shows televisivos e das opiniões polêmicas nas redes sociais, aqui, no mundo normal, onde ainda importa como falamos uns com os outros e o que falamos uns dos outros, esse é um assunto difícil de puxar em uma roda de conversa, para quem não possui credenciais médicas. Certamente, eu não tenho nem o conhecimento necessário nem a pretensão de questionar um único diagnóstico sequer.

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No entanto, questiono o aumento do número de diagnósticos em nossa sociedade e o pressuposto dominante em muitos contextos médicos de que mais triagem, mais testes, mais diagnósticos e mais tratamentos são sempre o melhor caminho. O’Sullivan também questiona tudo isso em seu livro que é, ao mesmo tempo, fascinante e informativo — e surpreendentemente relevante para líderes de igreja nos dias de hoje.

Mais doenças, menos estigma ou sobrediagnóstico?

O’Sullivan afirma que não é incomum encontrar mais pacientes com muitos diagnósticos. O fato concreto de que há uma proliferação de diagnósticos — e, por causa de certas condições, uma proliferação acelerada — não tem sido objeto de questionamentos. A pergunta principal é por que essa escalada está acontecendo. O’Sullivan oferece três possíveis razões.

Pode ser que nós simplesmente estejamos ficando mais doentes do que costumávamos ficar no passado: propensos à inatividade, imersos em microplásticos, assolados pela ansiedade da vida moderna. Ou pode ser também que, na verdade, não estejamos mais doentes do que antes, mas estejamos mais propensos e aptos a reconhecer e a tratar doenças, à medida que a tecnologia médica avança e o estigma social diminui.

O’Sullivan garante que existe uma dose de verdade nessas duas razões apontadas, mas, no final, ela dá mais peso a uma terceira:

Pode ser que nem todos esses novos diagnósticos sejam inteiramente o que parecem. Pode ser que problemas médicos indefinidos estejam se tornando diagnósticos rígidos e que diferenças normais estejam sendo patologizadas. Essas estatísticas podem indicar que experiências de vida comuns, imperfeições corporais, tristeza e ansiedade social estão sendo classificadas na categoria de distúrbio médico. Em outras palavras: não estamos ficando mais doentes — estamos atribuindo mais coisas à doença.

Existem dois problemas interrelacionados aqui: o sobrediagnóstico e a sobremedicalização. Como O’Sullivan define, um sobrediagnóstico é um diagnóstico tecnicamente “correto”, mas que “não beneficia o paciente e que pode, inclusive, prejudicá-lo”. Quando fala de sobremedicalização, ela se refere ao hábito de atribuir uma rotulação médica a “diferenças humanas comuns, a comportamentos ou a fases da vida”. Por exemplo, tratar coisas normais como “envelhecimento, noites mal dormidas, dificuldades de apetite sexual, menopausa e infelicidade” como doenças que devem ser medicadas, às vezes durante toda a vida.

Como a lógica da sobremedicalização é mais fácil de ser percebida, O’Sullivan dedica boa parte do livro à epidemia de sobrediagnósticos (que, por sua vez, pode levar a ainda mais sobremedicalização). Ao longo do livro — o qual explora as mais diferentes patologias, como Doença de Huntington, câncer, autismo, TDAH, Doença de Lyme e COVID-19 longa —, ela enfatiza uma diferença fundamental: se um diagnóstico é rigorosamente correto ou genuinamente proveitoso

O’Sullivan lista uma ladainha de suposições que pode parecer absurdo questionar: “que qualquer diagnóstico é melhor do que nenhum diagnóstico; que exames são mais precisos do que médicos; que os resultados dos exames são verdades objetivas e imutáveis; que a intervenção precoce é sempre a melhor opção; que os tratamentos que funcionam para um grupo de pessoas certamente funcionarão para outras pessoas; que o diagnóstico é algo fixo e definitivo; que os testes preventivos são o caminho mais seguro para a saúde a longo prazo; que mais conhecimento sempre vem para o bem.”

Mas o livro elabora uma defesa convincente em prol do ceticismo em relação a essas suposições adquiridas, combinando explicações de especialistas sobre como vários exames funcionam com histórias de pacientes, derivadas da própria experiência médica de O’Sullivan e de outros. O livro detalha como alguns critérios de diagnóstico se expandiram de modo a englobar pessoas que não apresentam sintomas bem definidos de seus aparentes distúrbios. A obra mostra como os pacientes são levados com extrema rapidez a fazerem exames e intervenções de necessidade duvidosa, apesar dos riscos claros para sua paz de espírito. E lamenta que poucos no ofício médico tenham parado, em meio a essa correria do progresso tecnológico, para perguntar: Será que isso pode fazer mais mal do que bem?

O que sabemos e como vivenciamos isso

À medida que desvenda a questão dos sobrediagnósticos em vários campos da medicina, a obra The Age of Diagnosis sempre leva a sério o sofrimento do paciente. Como neurologista, O’Sullivan faz questão de validar a dor psicossomática juntamente com transtornos psicológicos e físicos mais familiares. “Psicossomático” não significa “falso”. Em todos os casos que ela explora, mesmo naqueles em que seu ceticismo em relação aos diagnósticos dos pacientes é alto, sua compaixão é clara. “As lutas dos pacientes são reais”, ela diz; só que “medicalizá-las pode não ser a solução”.

As apostas são altas porque a medicalização inapropriada é algo perigoso. Podemos ser tentados a fechar os olhos para o sobrediagnóstico. Talvez ele seja desnecessário, mas e se for razoavelmente correto? E se o paciente quiser o diagnóstico, que problema há nisso?

O problema, segundo O’Sullivan, é que aplicar um rótulo diagnóstico não é um ato insignificante nem neutro. Ele pode remodelar nossa autoconcepção, nossa identidade pessoal, reformular nossas expectativas para o futuro e até mesmo — por meio da interação complexa e imperfeita entre corpo e mente — gerar sintomas que, de outra forma, não teríamos experimentado, reduzindo, em suma, a qualidade e até mesmo a duração da vida.

O simples fato de “saber que você corre alto risco de ter uma doença pode mudar a forma como você usa seu corpo e o quanto confia nele”, argumenta O’Sullivan. “Preocupação e incerteza criam um terreno fértil para a má interpretação de toda e qualquer doença normal e mudança corporal. Um rótulo médico não é uma coisa inerte.”

O livro nunca discute explicitamente a epistemologia, aquele ramo da filosofia que se preocupa com o conhecimento e com o modo como o adquirimos. Mas O’Sullivan está levantando questões essencialmente epistêmicas: O que podemos saber sobre nosso corpo e o seu futuro? O que deveríamos querer saber? Quando somos iludidos sobre a extensão de nossa compreensão? Como devemos agir a respeito daquilo que compreendemos? E como o conhecimento disponível para os ocidentais modernos — que vai muito além do que está acessível para boa parte do mundo hoje, sem mencionar o que estava acessível para nossos próprios ancestrais — nos influencia de maneiras que talvez sequer percebemos?

É tentador pensar que sempre devemos saber o máximo que pudermos. É tentador também imaginar que a medicina moderna forneça esse conhecimento de forma tão segura e abrangente quanto qualquer ciência exata. The Age of Diagnosis desafia de forma incisiva essas duas noções. A obra pede aos leitores que considerem que boas intenções nem sempre se traduzem em bons resultados e que mais medicina (ou mais alta tecnologia médica) não é necessariamente a melhor alternativa.

O’Sullivan não é cética em relação à tecnologia; na verdade, minha única crítica substancial é que ela não se preocupa muito com o tempo de tela dos adolescentes. Ela também não é reflexivamente crítica em relação a especialistas ou a instituições de elite. Ela é uma médica que quer fazer o certo por seus pacientes e chegou à conclusão de que fazer o certo pode, às vezes, significar fazer menos.

Um livro que é para todos os pastores

Nas histórias de pacientes que compartilha, O’Sullivan repetidamente levanta a questão de como cuidar das pessoas, enquanto elas passam por dificuldades comuns da vida humana. Segundo ela argumenta, a sobremedicalização expandiu as definições de doenças “de modo que, com o tempo, pessoas que antes seriam consideradas saudáveis ​​são atraídas para o grupo de pessoas enfermas”.

Esse cenário pode parecer algo que está longe do escopo de um pastor, e sem dúvida está, no que diz respeito a algumas doenças. O seminário não dá nenhuma experiência específica para discernir sinais de câncer ou para determinar quais níveis de açúcar no sangue se qualificam como pré-diabetes.

Mas diante de outros quadros, particularmente aqueles que afetam o comportamento e o estado mental, os insights de O’Sullivan têm grande relevância para o ministério pastoral e o trabalho mais amplo da igreja. Na verdade, eu recomendo este livro para todo e qualquer pastor, e particularmente para pastores de igrejas com grande número de crianças e jovens adultos.The Age of Diagnosis pode preparar pastores para as tarefas de exortação e encorajamento.

Pastores não são médicos, evidentemente, e devem ter toda a humildade necessária em relação aos cuidados de saúde física e mental. Mas eles devem hesitar em se afastar quando encontrarem sofrimento físico, mental e emocional. Em alguns casos, o que parece ser uma deferência à perícia médica pode, na verdade, ser abdicação da responsabilidade pastoral em relação ao sofrimento de um cristão, sofrimento esse que tenha algum componente espiritual.

Os efeitos de tal abdicação pastoral podem ter consequências vastas e danosas. “As palavras que usamos para descrever nosso sofrimento fazem uma enorme diferença na forma como ele é percebido”, diz O’Sullivan. Atribuir o sofrimento exclusivamente a patologias biológicas internas (em vez de, digamos, atribuí-lo a respostas comportamentais ou espirituais a estressores externos) pode parecer algo que valida as pessoas. Isso comunica a elas que seu sofrimento é real, e muitas vezes ele é real.

Mas também pode, involuntariamente, dizer-lhes que elas não têm nada a fazer a respeito desse sofrimento, que é apenas uma questão de química [do organismo] e algo totalmente separado do estado de sua alma. “Temo que uma visão que fale excessivamente sobre processos biológicos internos transforme as pessoas em vítimas passivas de seu distúrbio médico, o que tira das mãos delas o controle”, alerta O’Sullivan. “Uma pessoa que acredita ser incapaz se comporta como se fosse incapaz, o que provoca outros a tratá-la como se fosse incapaz, e assim o ciclo se retroalimenta.”

Os cristãos devem estar dispostos a buscar explicações e tratamentos médicos quando necessário. No entanto, como pessoas que acreditam em realidades espirituais e na necessidade da igreja, devemos estar abertos também a explicações espirituais e relacionais para o sofrimento. Os pastores não podem mudar o cérebro ou a química do organismo das pessoas. Mas eles podem exortar as pessoas que estão sofrendo a fazer um autoexame e a mudar a forma como se comportam, como pensam sobre si mesmas, como respondem às dificuldades e aos males que todos nós encontraremos como seres humanos que estão envelhecendo em um mundo decaído.

Quanto ao encorajamento, O’Sullivan sugere que isso, mais do que medicamentos ou outros tratamentos, é o que muitos pacientes fundamentalmente querem, quando buscam um diagnóstico. Várias vezes, ao longo do livro, no que parece um eco não intencional da linguagem bíblica (como Marcos 16.18, KJV), a autora fala da profunda gratidão dos pacientes pelos médicos que dedicam tempo para “impor as mãos” sobre eles.

“A sociedade tem uma falta generalizada de instituições de assistência e cuidado que não sejam consultórios médicos”, observa O’Sullivan. “Isso significa que a doença física é sempre priorizada e, portanto, é mais simples quando a angústia é expressa sob a forma de um problema médico”, o que colocará “uma pessoa sob a jurisdição de uma das poucas instituições disponíveis [na sociedade] para oferecer apoio em uma crise”.

Mas existe outra instituição que pode oferecer esse apoio — uma instituição muito comum, uma instituição que não cobra consultas, uma instituição que está de braços abertos para todos os que chegam, diagnosticados ou não. É a igreja. E, de fato, os cristãos que leem os comentários finais de O’Sullivan podem relacioná-los justamente à falta de cuidado pastoral, de boa teologia, de prática da fé e de uma comunidade robusta na igreja:

As pessoas estão com dificuldade de conviver com a incerteza. Queremos respostas. Queremos que nossas falhas sejam explicadas. Esperamos muito de nós mesmos e de nossos filhos. Ficamos decepcionados com a vida quando ela não nos dá constantemente boa saúde, sucesso e uma transição suave de uma estação para outra. Explicações médicas se tornaram o curativo que usamos para nos ajudar a lidar com essa decepção.

E agora o público e os profissionais médicos estão presos em uma folie à deux [ou “psicose compartilhada”, uma “loucura a dois”], a qual estamos lutando para reconhecer. Há muitas mais perguntas sendo feitas aos médicos do que eles podem de fato responder. Pessoas preocupadas vêm até nós, o tempo todo, esperando encontrar uma explicação coerente para o seu problema. Somos empáticos com as necessidades de nossos pacientes e ficamos aliviados se tivermos uma explicação a dar. E é bem possível que dessas pessoas [que nos procuram], o que algumas realmente quisessem fosse segurança, embora cada vez mais a resposta pareça vir sob a forma de um rótulo.

Sou grata por viver na era da medicina moderna, na era das vacinas, da anestesia e dos antibióticos. Recentemente, li uma história incrível sobre a peste que se espalhou pelo Reino Unido, em meados de 1300. Entender o quanto nossas vidas são higiênicas, seguras e saudáveis, quando comparadas às de nossos antepassados, é algo que nos faz refletir. Quaisquer que sejam as frustrações legítimas que tenhamos com nossos sistemas médicos e de seguridade de vida, objetivamente falando, temos uma vida muito, muito boa.

No entanto, a medicina não é a única resposta para os problemas humanos — longe disso. A obra The Age of Diagnosis está certa em nos alertar contra essa dependência excessiva dos remédios ou soluções ainda imperfeitos da medicina; está certa em insistir que às vezes não estamos deprimidos, mas apenas tristes; que às vezes não estamos clinicamente fatigados, mas sim sobrecarregados de trabalho e mal pagos; que às vezes não somos hiperativos, mas, na verdade, indisciplinados; que às vezes não estamos doentes, mas adoecidos pelo pecado (ou pelos pecados de nossos próximos). Por tudo isso, já comprei um exemplar dessa obra para a minha igreja.

Bonnie Kristian é diretora editorial de ideias e livros na Christianity Today.

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